domingo, 3 de março de 2019

JUDAS ISCARIOTE

O consagrado escritor Humberto de Campos encontra em Jerusalém, às margens do Jordão, o até hoje incompreendido Judas Iscariotes. Com ele conversa sobre a condenação de Jesus e realiza esclarecedora entrevista, ditada a Chico Xavier, em Pedro Leopoldo, o livro é CRÔNICAS DE ALÉM-TÚMULO - em 19 de abril de 1935.
Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judeia parece dormir o seu
sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa
longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço
da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um
veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas,
buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os
segredos insondáveis do Nazareno.
Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.
Os espíritos podem vibrar em contacto direto com a história. Buscando uma relação íntima
com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece
que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto
irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de
duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio
das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens os
gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizou
Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica
irradiava-se uma simpatia cativante.
- Sabe quem é este? – murmurou alguém aos meus ouvidos. – Este é Judas.
- Judas?!...
- Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver
atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se
momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no
passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas
costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando
nos seus atos de antanho...
Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do
repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um
abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para
que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.
-O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariote? – Sim, sou Judas – respondeu aquele homem
triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das
Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos
homens transitórios...
- É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na
tragédia da condenação de Jesus?
- Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às
tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio
Pilatos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham
ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer
as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. 
O SINÉDRIO desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra.
Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um
dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela
doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma
com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca
poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de
um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia
na Terra a queda de um chefe de Estado. 
O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde
Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás
apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não
julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o
suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
- E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
- Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores.
Depois da minha morte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha
falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e
as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fui
traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros
resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por
amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade
pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido
na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...
- E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.
- Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. 
E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino...
Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem
uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em
todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho
complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre
o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de
infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha
consciência no tribunal dos suplícios redentores.
Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua
misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus
algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a
retalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado...
- É verdade – concluí – e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de
vendê-lo.
Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras
invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens
pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas
mortas, procurando um mar morto.

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